Poucas pessoas tão densas e interessantes terei conhecido quanto Nelson Cavaquinho. Lembro-me de que ele me foi apresentado por Sérgio Porto no Zicartola, o lendário bar de Zica e Cartola na Rua da Carioca.
“- Este aqui, chapinha, é o cantor e compositor Nelson do Cavaquinho, que não é do cavaquinho, mas do violão. Que não é cantor porque é rouco e desafina. Mas te garanto que compositor ele é, e dos melhores, apesar de ter o mau hábito de vender muitos dos seus sambas”.
Nelson, já mais pra lá do que pra cá, olhou Sérgio de alto a baixo e disparou com afeto indisfarçado: “- Ah, é? Pois então, pra você deixar de ser besta e metido a dono da verdade, vai me pagar a conta dos meus comes e bebes desta noite”.
O poeta – começando a fazer seu auto-retrato ante meus olhos – comandou o máximo de “bebes”, o mínimo de “comes” e fez duas ou três aparições no palco do bar durante a noite.
Foi ali naquele encontro em que todos bebemos mares de uísque e chopes, que descobri um dos sujeitos mais originais que conheci em toda a minha vida. E por várias razões: a primeira era o tipo físico do Nelson, atarracado e pequeno, mas admirável pela cor de bronze luzidio, que fazia contraste com uma cabeleira branca, bela e vasta. Seu rosto, expressivo e forte, era quase sempre emoldurado por um grosso par de óculos que fazia dele uma figura severa. Seu todo era triste. E quando cantava, atracado ao violão que mais parecia um náufrago agarrando sua tábua, saía dele uma carga magnética, rigorosamente indefinida, que me comovia a cada música.
Ah! A música do Nelson. Que sambas, que letras, que unidade estilística, que originalidade!
Na noite em que o conheci, ele cantou músicas tristes e que falavam de morte, de enterro, de corações partidos, de despedidas.
Ao final, impressionadíssimo com o que acabara de ouvir, bradei pro Sérgio Porto, do alto da minha pretensão, só perdoável pelos insuportáveis vinte e poucos anos: “- Mas é o nosso Boris Vian, ou melhor, é o nosso Sartre da Mangueira”.
“- Deixe de ser coroca, chapinha, você não vê que Nelson dá de dez nesses filósofos chatos?”
Dava. E dará sempre, a quem se dispuser a ouvir sua grande arte carioca. E universal.
Ricardo Cravo Albin
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